Filme "O Processo" faz autópsia de um mecanismo golpista

“O Processo” e a visão política do Impeachment

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Desde já o maior ganhador de prêmios internacionais para o Brasil este ano, “O Processo” documentário de Maria Augusta Ramos, que estreia nesta quinta-feira dia 17 de maio, já pode ser considerado o maior filme brasileiro de 2018… ao menos até agora. Estreou pela primeira vez no início do ano no Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, onde este que vos escreve esteve presente como correspondente do Cinema em Série e pôde conferir a comovida reação em cadeia não apenas para o público brasileiro, porém, e inclusive, também para o estrangeiro.

E como a obra teria materializado esta universalidade para alcançar tantos tipos diferentes de público, levando-se em consideração que o leitor já deva até saber do que se trata o filme a esta altura, de tanto hype que ele gerou: e deve-se dizer que, inclusive, supera expectativas neste quesito, mas não sem observar o princípio do contraditório primeiro. O documentário seguiu o processo de Impeachment da presidenta Dilma Rousseff, tentando acompanhar membros tanto da defesa quanto da acusação, justamente almejando prover um resultado mais justo e proporcional da História com H maiúsculo, uma vez que os noticiários e jornais escolheram um lado único desde o princípio e não foram imparciais na hora de veicular essa história tão conhecida e acompanhada por todos. Então, o que o espectador teria a ganhar com o filme que já não conhecesse previamente, certo? Deve ser a pergunta na cabeça de muitos leitores.

Em primeiro lugar que a narrativa do que foi contado até o presente momento pode ter sido extremamente enviesada e unilateral, ao mesmo tempo que ocorreu no decorrer de meses a fio. Algo tão mitigado no tempo, na TV, nos impressos, nos memes e trollagens poderia se perder muito facilmente no caminho, pois trataram a coisa toda mais como focos pontuais de sensacionalismo e menos como direito democrático do povo em tomar conhecimento e participar do exercício de democracia do qual ele faz parte. Evidente, não podemos negligenciar as diferenças políticas ou partidárias entre direita e esquerda na recepção deste filme, mas ocorre que pessoas de ambos os lados já amaram e também odiaram o filme, tão controversa e fervorosamente que ele permanece um trend topic em todas as redes sociais como filmes brasileiros jamais costumam atingir! “O Processo” é o filme mais falado do país, e fora dele também, desde que “Aquarius” de Kleber Mendonça Filho invadiu o extracampo de seu longa-metragem e sua equipe levantou as plaquinhas contra o “Golpe no Brasil” em plena competição oficial do Festival de Cannes há dois anos atrás.

Sabemos que política (bem como futebol e sexo) vende. Mas não estaria angariando o prestígio internacional e colecionando prêmios lá fora como está se não viesse junto de estofo. Começou ficando entre os três filmes premiados pelo voto popular no próprio Festival de Berlim 2018 onde ele estreou. Depois, ganhou o maior prêmio do Festival Visions du Réel, um dos maiores festivais de documentários do mundo. Agora mais recentemente ganhou os prêmios Silvestre e o de Público no Festival Indie Lisboa, e há poucos dias também foi eleito como melhor filme pelo Documenta Madrid 2018. Além de ter sido aclamado e provocado sessões tão disputadas que precisaram abrir novas sessões extras no Festival É Tudo Verdade, maior Festival de documentários da América Latina, mesmo tendo sido exibido fora da Competição (talvez por conservadorismo…?).

Na verdade, e por ter acompanhado o filme de perto em alguns destes Festivais, este que vos escreve pôde sentir a reação até mesmo de estrangeiros sobre o filme, e realmente a essência do que é passado tocou a todos. A câmera objetiva de Maria Augusta, que demonstra aos retratados que estão sendo filmados, ao mesmo tempo em que ela pede que eles não reajam de forma alguma para a câmera, tentando agir como agiriam da mesma forma que nada estivesse ali, poderia, como técnica, ter falhado de modo retumbante, forçando os envolvidos a mesmo sem querer performarem “um papel” ao saberem que estavam sendo filmados. Contudo, como o maquinário de produção dela não era o único, havendo dezenas de câmeras filmando tudo simultaneamente, com interesses e destinos totalmente conflitantes ou difusos, o efeito objetivo é recuperado, pois no meio de tantas câmeras onde você perde a noção de qual estaria registrando o quê, você acaba invisível de novo. Os personagens voltam ao ponto de partida de poderem agir naturalmente, porque, afinal, nunca se sabe qual das câmeras é para a realização de um filme (e havia mais de um sendo produzido ali, por ambos os lados políticos), ou para noticiários e fins televisivos, ou informais, como internet e lives de redes sociais…etc. Todo mundo quer uma fatia da torta de sua História, mas que, infelizmente, não nos havia sido permitido opinar de qualquer versão diferente da hegemônica contada até então simplesmente porque não era você com uma das câmeras presentes ali no Congresso ou no Palácio da Alvorada em Brasília. (Aliás, a tomada aérea da Praça dos Três Poderes com que começa o filme, vide abaixo, já ficou na história como um dos planos mais surreais do cinema brasileiro, com o povo dividido literalmente como um Mar Vermelho de um lado e verde e amarelo do outro).

Sim, OK, vamos dar o braço a torcer que infelizmente nem todos os membros da acusação aceitaram participar com mais depoimentos pessoais do que apenas os planos gerais autorizados para filmagem durante as plenárias e audiências públicas, mas é aí que entra a montagem da experiente Karen Akerman. Onde Maria Augusta Ramos filmou mais de 450 horas de cenas inéditas, e onde entrava a possibilidade de inserir imagens e vídeos de acesso livre como da TV Senado ou outros programas que cobriram exclusivamente a História, eis que Karen pôde tomar a liberdade de criar dialética e até tensão na forma de contrapôr as cenas e conversas de cada personagem, de uso exclusivo ou coletivo, de modo a dar a todos o direito de resposta. E que respostas! Algumas das quais ainda mais pungentes pelos silêncios constrangedores que se seguem captados na argúcia experiente de Maria Augusta, que já vem de uma longa carreira de documentários investigativos como “Juízo”, “Justiça” e “Morro dos Prazeres”, sua autodenominada trilogia da justiça original, onde agora “O Processo” se insere como uma tetralogia.

E, mesmo apresentando muitos personagens, nem todos com nomes citados em cena, já que a cineasta prima pela sobriedade, sem cartelas informativas durante as cenas (no máximo informando a data e qual era o tema da audiência que estamos acompanhando, então), o fato é que foi assim que ela conseguiu dar universalidade à história que aconteceu no Brasil, mas poderia acontecer em qualquer lugar do mundo. Há códigos que são universais, como haver um partido que defende mais profundamente o trabalhador, o operariado e os direitos sociais, enquanto que há outro lado que defende o capital acima de tudo, mesmo que cada regra possa conter exceções, mas o que já guia qualquer expectador leigo através do escamoteamento político que anda acontecendo. Especialmente através dos mea culpas e de quem os assume e quem não assume nada, demonstrando quem consegue manter o caráter mesmo ante a adversidade.

Isso tudo porque, como a diretora não se alongou a contar o pano de fundo de cada personagem, nem a interminável lista de processos que cada um destes enfrenta por si próprios, como Romero Jucá e Eduardo Cunha (o que para algumas pessoas da esquerda foi algo que faltou, e sentiram falta), senão o filme poderia chegar a 6…8 horas de duração, ela focou nos atos internos ao Processo da Dilma, que, mesmo para opositores, hoje em dia andamos todos chegando ao consenso de que de fato se tratou de um Golpe Parlamentar. Mesmo aqueles politicamente contrários à Dilma, durante o exercício de seu cargo, acabaram completamente desgostosos e revoltados com o resultado final do jargão que dizia “Primeiro tira a Dilma, depois tira o resto”. Não foi assim que aconteceu. Temer possui o maior índice de reprovação de um presidente na história deste país, e mesmo assim o foco está em pessoas que não estão diretamente ligadas ao poder no momento, e nenhuma destas mesmas forças está concentrada em remover quem continua a afundar o país e permanece ilegitimamente em cargos de poder. “O Processo” de Maria Augusta Ramos, portanto, se aproxima enfim ainda mais de “O Processo” de Kafka, obra na qual declaradamente se inspira, desvelando os absurdos dos bastidores do poder que andam decidindo o destino de nossa Nação completamente sem a nossa opinião. A pergunta que resta após este filme coqueluche, que deve arrastar multidões ao cinema para ver nossa História transformada com excelência em linguagem cinematográfica, gerando verdadeiras torcidas Fla X Flu nas salas onde é exibido, é até quando vamos nos calar diante de tamanho absurdo! Vamos sair das salas de cinema e requerer nossos direitos! Pois esta é a função maior do cinema, conversar com a sociedade como a reflexão-crítica de um espelho, e provocar que conversemos de volta com ele. Função cumprida!

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